


O Cenário drag em Juiz de Fora e a nova geração de drags

Você conhece a arte drag?
Definir o significado de drag ou colocá-lo em uma caixa de designações não é tarefa fácil visto que a arte tem múltiplas definições e estilos diversificados dentro do conceito geral, mas tentarei aqui traçar um panorama do que ela era no decorrer das décadas adentrando as múltiplas possibilidades existentes.
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Em suma, drags são artistas performáticos que se transformam com o intuito profissional ou artístico. Historicamente, o costume de se montar começa séculos atrás em um cenário teatral onde os homens representavam a figura feminina uma vez que mulheres não podiam ocupar este espaço. É evidente que a arte drag começa em um cenário completamente machista onde mulheres eram proibidas de participar das apresentações, todavia a jornalista drag que vos fala tentará desconstruir este modelo engessado e defasado no decorrer da matéria. Drag é arte, resistência ou até mesmo entretenimento E NÃO POSSUI GÊNERO. Qualquer pessoa, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero pode se montar, SEM RÓTULOS E PRÉ-REQUISITOS.
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Para a pesquisadora e ícone dos estudos Queer no Brasil, Guacira Lopes Louro, a figura da drag queen é a do exagero e representa a possibilidade de construção do próprio corpo. Podemos entender então que o corpo drag não é simplesmente o modelo de corpo da representação da mulher nem o do homem. As drags não sem encontram em qualquer um deles, ou seja, drag não se enquadra nos segmentos engessados de sexo, sexualidade e gênero, vai além.
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Mas como isso começa a se popularizar? As drags tais quais falamos hoje em dia, começam a surgir em peso nos anos 1950 e 1960 (principalmente nos Estados Unidos) mas tiveram seu ápice no decorrer dos anos 1980 e 1990. Neste cenário, as drags ainda eram muito invisibilizadas e estavam diretamente relacionadas ao underground, não possuíam espaço ou visibilidade. Uma figura que se tornou popular na época foi Harris Glenn Milstead, conhecido mundialmente pela personagem Divine, que protagonizou os filmes Pink Flamingos, Problemas Femininos, Polyester e Hairspray. Todos dirigidos pelo diretor John Waters.
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Não posso deixar de mencionar também a pioneira Marsha P. Johnson, drag norte-americana que esteve a par da icônica Revolta de Stonewall, em 1969, conhecida como a primeira reação LGBT frente ao preconceito e que dá origem ao Dia Internacional do Orgulho LGBT. Tornou-se uma drag queen ativista dos direitos humanos e infelizmente faleceu em 1992, aos 42 anos.
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O filme australiano “Priscilla a Rainha do Deserto”, de 1994, também foi responsável pela popularização da cultura da montação. Não podemos deixar de mencionar também a drag mais bem paga de todos os tempos: RuPaul, uma das maiores celebridades drags que surgiu durante os anos 1990 e que atualmente apresenta o programa RuPaul's Drag Race, na Logo TV.
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Ademais, seria completamente desonesto esquecer da importância do cenário nacional para a arte drag em contexto mundial. De 1972 à 1976, por exemplo, tínhamos o grupo Dzi Croquettes, composto por diversos monólogos alternados. Era apresentado por homens com visual exuberante, maquiagem pesada e trajes femininos. Os Dzi Croquettes, inclusive, resistiram a opressão militar e conquistaram destaque internacional. Nomes como Márcia Pantera, Kaká Di Polly, Veronika, Lorna Washington, Deydianne Piaf, Lola Batalhão, Isabelita dos Patins, Silvetty Montilla e várias outras, foram imprescindíveis para o despertar da arte drag no país. Todas apresentam carreiras consolidadas há décadas e foram importantes para a popularização do fazer drag no Brasil. Também é oportuno mencionar as paradas do Orgulho LGBT, palco para o surgimento e fortalecimento de diversas drag queens nacionais.
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Vale ressaltar também que, desde 1977, acontecia em Juiz de Fora o concurso Miss Gay, responsável por consolidar a carreira de várias transformistas da época. O evento, foi aprimorado pelo Movimento Gay de Minas, o MGM (atualmente em decadência por questões públicas e declarações errôneas por parte de organizadores), dando espaço à Rainbown Fest e surgimento da Parada Gay em Juiz de Fora. Atualmente não temos mais nenhuma das atividades.
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Visto que a arte drag queen é desconhecida por muitos e que a cultura da montação em Juiz de Fora foi invisibilizada nos últimos anos devido à falta de investimento das casas noturnas locais, morte de eventos como a Parada LGBTI e a ocupação de fundamentalistas em cargos políticos da cidade, a matéria foi criada com o intuito de contextualizar o cenário drag local a partir do panorama de como ele foi no passado e perpassando como ele é atualmente (a nova geração de drag queens). O trabalho foi desenvolvido a partir de entrevistas, pesquisa de campo e, obviamente minhas experiências subjetivas. Além de jornalista, também sou drag queen e moradora da cidade. Ademais, a matéria é fruto também do que foi desenvolvido durante a disciplina “Técnica em Hipermídia”, da faculdade de Jornalismo da UFJF, proporcionada pela professora e jornalista Júlia Pessoa. Autoria do aluno Lucas Gonçalve (mas adotarei a persona LU CY enquanto vos escrevo). Vale ressaltar também que o texto não estará preso aos moldes tradicionais do jornalismo, seguirá a linha independente. A partir de agora, me insiro aqui como a narradora dos fatos e personagem dessa história verídica.
Boa leitura para todas e todos.
Boate Stand Up e nossas veteranas:a nova geração começa em JF
Como podem perceber, assumo aqui, no texto que vos escrevo, minha busca em conhecer um pouco mais sobre o cenário drag de Juiz de Fora e o que acontecia no passado. Tenho memórias recentes de meu namorado (Daniel/GárNea), também drag queen atualmente na cidade, me contando sobre as idas (quando ainda adolescente) em uma boate conhecida em JF (e fora dela) chamada Stand Up, que trazia vários shows drags na programação.
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Ao buscar “Boate Stand Up Juiz de Fora” no Google, tudo que se encontra são acervos de vídeos de performances, fotos de drag queens e pessoas se divertindo no espaço. Nada contextualizando o que ela foi. Nada sobre quando ela surgiu de fato. Nada! Nenhuma matéria redigida sobre a casa noturna que dava tanta visibilidade para queens locais, além de trazer grandes nomes do cenário externo para cá. Encontrei que a boate funcionava frequentemente, na Avenida Getúlio Vargas, sob a direção de Celso Maranhão e DJ Diego. Para mim, que venho de outro planeta não mudou muita coisa, não participei deste momento, não presenciei o que acontecia, fui menosprezada por muitas conterrâneas que seriam ótimas fontes. Talvez porque ainda não estou consolidada enquanto a maior jornalista drag, mas Lully Fashion que me aguarde num futuro próximo, SASHAY AWAY!
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Pois bem, na busca incansável me deparei com uma tese de mestrado desenvolvida por Rodrigo Souza Silva, onde ele trabalha a figura drag queen e suas múltiplas possibilidades de existência. Nela Rodrigo aborda um pouquinho do cenário daqui e conta sobre grandes nomes de drags que residiam a boate: Hudson/La Beauty, Maycon/Kinaidos e Rafael/Kathlyn. Inclusive, o mesmo desenvolveu juntamente de amigas o documentário Dressed as a girl (você pode assistir clicando no nome), retratando a experiência das três na boate. Rodrigo relata que “foi uma experiência fascinante. Apresentamos o documentário em um festival de cinema da cidade. Maycon/Kinaidos se montou especialmente para ir à sessão”.

Kinaidos em performance na boate Stand Up
Busquei por Kinaidos no Google também e me deparei com performances incríveis. Posteriormente fui para o Facebook, a encontrei e logo traçamos uma longa conversa. Maycon, atualmente, não faz mais a personagem. “Comecei com a drag em 2008 ou 2009 se não me engano (não me lembro o ano exato). Eu havia acabado de terminar um namoro e estava depressivo, eu precisava de algo pra fugir da depressão. Foi onde eu fugi da realidade criando um personagem. A Kinaidos é bem diferente de mim, muito diferente mesmo”, relatou Maycon.
Segundo ele, sua fama na internet gerou polêmica e a notícia sobre estar se montando chegou rapidamente ao ex que o causou depressão. “Ele odiava drag queens e era uma delícia saber que ele era ex de uma). Fugir da realidade com a Kinaidos me ajudou a sair da depressão. Sendo drag eu poderia ser quem eu quisesse, quando eu quisesse”.
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Maycon contou também que parou de se montar logo no ápice de sua carreira devido ao fato de dedicar muito mais tempo para Kinaidos: “A personagem começou a tomar conta de mim, eu só comprava saltos, perucas, só roupa mais femininas, todas as sextas eu encontrava com meus amigos em um bar, próximo à Stand Up”. A personagem de Maycon, Kinaidos, foi um nome importante para o cenário drag queen da época visto que o seu estilo de drag fugia do convencional, ademais foi na Stand Up que a drag alcançou grande notoriedade.
“Eu criei toda uma história pra minha personagem; como ela nasceu, de onde ela veio, como cresceu, como vive, e eu vivia a personagem intensamente. Eu achava que a cena drag precisava de algo diferente, e eu estava meio revoltado com minha família ter descoberto minha sexualidade e alguns parentes distantes (tios, primos, esposas de tios) dizendo que isso era errado, que Deus abominava a homossexualidade, que eu iria pro inferno, que eu estava condenado. Isso tudo incomodou. De certa forma, foi onde decidi que meu personagem seria um demônio. Eu não queria afrontar a igreja, não queria fazer blasfêmia, drag é representavidade, e em todos os meus shows eu passei alguma mensagem. Eu sempre quis fazer algo diferente; algo que eu nunca havia visto em drag alguma ou diferente de qualquer coisa que eu já vi”.
Segundo ele, a personagem não era completamente feminina, mas um demônio sem sexo. Se montava com o próprio peito à mostra, sem sutiãs, dublava músicas com artistas masculinos e geralmente usava algo em inspiração à mitologia grega, romana, hindu ou africana. “Achava incrível poder ser Afrodite e no mesmo show me transformar em Eris e Hades, tudo em um único show”. Além de história, Kinaidos também deixou na cidade uma filha (termo utilizado para designar à pessoa que você insere no mundo drag): Amanda Fierce. A drag queen que também já se apresentou na Stand Up, é reconhecida em Juiz de Fora pelo trabalho que desenvolve atualmente.
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Amanda Fierce e Kinaidos em 2014

“Com 16 anos vi o primeiro video no Youtube de um show e achei super interessante. A pulga ficou atrás da orelha mas só comecei a brincar com maquiagem no meu quarto de madrugada depois dos 18. Ficava na webcam com dois amigos, um também ficava testando maquiagem comigo, o outro já era drag residente em Juiz de Fora, futuramente seria meu "pai drag". Com 19 anos esse amigo me inscreveu no Novos Talentos, que tinha na boate Stand Up... no ano que participei não houve ganhadora porem as cinco finalistas foram contratadas pela casa, cada uma com um final de semana, umas na sexta outras no sábado, o restante é história”, contou Igor S. Filgueiras, criador de Amanda Fierce.
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Embora Amanda tenha participado de tempos de glória da Stand Up, ela faz parte de um cenário muito diferente do de Kinaidos, por exemplo. A Stand Up logo fechou as portas! O que se tinha posteriormente eram festas organizadas pelo MGM. Neste contexto, artistas como Eduardo/Duda Flux e Wagner/Beyoncé Ravell (que atualmente já tem até um single no Youtube, Sem dó), também conquistaram notoriedade e são reconhecidas não só na cidade, que atualmente não tem espaço para tal, mas em várias outras que lhes dão espaço.
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Segundo Rodrigo Souza Silva “as festas no MGM não duraram muito, depois de julho de 2013, provavelmente a única festa que reuniu drag queens em Juiz de Fora foi o Troféu Celebridades 2014”. Ainda sobre o fechamento da Stand Up, Amanda comenta: “quando me montei em 2010 a cena drag já estava caindo, com o fechamento da Stand Up a cena praticamente zerou! O que temos hoje em dia são drags que se montam pelo prazer de se montar. Quando há eventos dificilmente somos contratadas, vamos na festa vestindo a nossa personagem por amor, pelo retorno das pessoas, por não querer que a nossa personagem morra! Mas retorno financeiro? Difícil”.
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Ele informa também que havia um dos mais antigos eventos de premiação pela transformista mais bonita, como já mencionado, o Miss Brasil Gay que infelizmente chegou ao fim. “Os shows de drag começaram a ser cortados de eventos indiretamente por conta da onda enorme de entorpecentes. Parar a música da festa para anunciar a atração, que as vezes vinha com uma música de ritmo diferente do que estava sendo tocado começou a ‘cortar a onda’ e a falta de interesse do público foi aumentando. Empresa precisa de público, então eles fazem o que a ‘massa’ quer e a massa não quer show. Já se foi o tempo em que o show era a atração principal... Há outras vertentes sendo exploradas pra manter a imagem viva, gogo-drags, drag DJ, hostess e afins, mas só se encaixar no tema da festa, caso contrário é só por amor”, comenta Amanda Fierce.
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Outro nome drag que continua consolidado enquanto parte do cenário drag atual de Juiz de Fora é Tiago Capuzzo, conhecido na noite por TITIago. A drag queen, que já lançou vários clipes musicais, e que também se apresentou na Stand Up, comentou a respeito de como era aa cena drag aqui na cidade: “O cenário drag em Juiz de Fora, há seis anos atrás quando comecei a me montar profissionalmente, era incrível. Existiu uma boate gay aqui chamada Stand Up, oque abriu muitas portas para todos que tinham essa vontade de ser drag”.
De acordo com TITIago, havia também o concurso “Novos Talentos”, que ela teve a oportunidade de apresentar por dois anos. TITIago comenta que neste período surgiram shows drag de peso como de Ikaro Kadoshi, Striperella, Lysa Bombom, Robytt Moon, Leona Top Fluor, Kayka Sabatella, Fernanda Muller, La Belle Beauty e muitas outras. A drag queen ainda ressaltou que com o fechamento da boate Stand Up, houve a desistência de muitas queens locais. “Depois do fechamento muitos resolveram parar de montar, mas eu fui e persisti, me atualizei e não deixei o meu personagem se apagar, com muita determinação, porque amo o que faço”, ressaltou TITIago.
Amanda Fierce no clipe "Me usa e me abusa" da drag TITIago

TITIago, grande nome da cena drag queen juiz-forana
Em suma, o cenário antecessor ao atual foi muito importante para a inserção de várias pessoas no mundo drag. Infelizmente com o fechamento da boate Stand Up, como mencionou TITIago, muitas drags pararam de se montar e houve invisibilidade da arte em Juiz de Fora. Mas será que a nova geração de drags, atuais na cidade, conhecem toda essa história?
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Daniel Schaefer, estudante de Ciências Humanas na UFJF e pessoa por traz da drag GárNea, rememorou os tempos da boate em entrevista: “Eu sempre ia e ficava boquiaberta com as drags, inclusive a Kinaidos Sammael e a Wandera Jones, que eu tenho como referências. Não poderia me esquecer da saudosa Fernanda Muller, que além de apresentadora era uma mega performer. Pode-se dizer que o cenário antecessor era muito forte, porque além da Stand Up, que proporcionava um espaço para drags da cidade e região, ainda havia atrações de fora como Dimmy Kieer e outras”.
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Welerson de Souza, que dá vida a personagem Leslye Housvel, é formado em teatro, estudante técnico em enfermagem e hostess in drag de uma casa noturna. Welerson, inclusive, afirmou sentir-se frustrado por não ter sido drag anteriormente. “Fico frustrado por ter dado vida à Leslye no cenário atual e não no anterior, pois as drags da geração anterior lutavam por seu espaço, colocavam a cara pra bater. Iam pra boate montada ainda que não fossem fazer show. De certa forma impunham sim sua presença à sociedade que de alguma forma acolhia essas drags. No cenário anterior, havia mais glamour em torno da montação. E o principal pra mim era que a maioria das drags da geração anterior desvinculavam as suas personas de si mesmas. Hoje temos gays que estão simplesmente se vestindo de mulher e se dizendo drags”, comentou.
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Leslye Housvel
Rodrigo Medsan/Eva Medsan que é estudante de canto erudito, ballet clássico e profissional de danças urbanas disse que também admirou e presenciou o cenário antecessor.
“Eu frequentei e trabalhei na única boate que dava palco para as drags atuantes da cidade na época, a Stand Up, e ali tive o prazer de acompanhar de pertinho o trabalho delas, nos camarins, palcos, concursos... Foram algumas delas: Gabanna, Kathlyn Kaymon, Camila Sorrah, Alicia Andrews, Amanda Fierce, Titiago, Duda Flux, Beyoncé Ravell, La Beauty, Leona Hickman, Dayana Müller... Dentre outras que somaram muito no cenário drag local. Não posso deixar de citar também o MGM, que chegou a desempenhar um bom trabalho com elas, Luka Bordony era a anfitriã drag da ONG, e oferecia aulas das quais alguns amigos meus participaram e aprovaram”.
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Sobre o atual cenário, Rodrigo, que já apareceu montadíssima em vários clipes da cantora e compositora MC Xuxu como “Bonde das Travestis” e “Quero ficar”, afirmou que o vive na pele e tem orgulho por ter desenvolvido isso em sua carreira. Rodrigo disse ainda: "Nós atualmente nos travestimos não de mulher, não de homem, mas de algo livre de gênero, e a família e a sociedade não estão prontos pra encarar isso. Por isso costumo dizer que somos nossa bandeira, somos a militância ambulante que carrega isso no cabelo, vestuário, maquiagem... Não fazemos mais isso só pra enfeitar e pra entreter. Somos palhaços sim se quisermos, mas não estamos aqui pra fazer rir apenas, mas estamos aqui pra nos impormos, pra gerar incômodo mesmo. Subverter o feminino e o seu papel, pra romper com os padrões impostos e pra acostumar os olhos das famílias, dar visibilidade ao inusitado e sermos valorizados justamente pelas diferenças, legitimar isso e celebrar a diversidade. "Se você não se encaixa no mundo ao qual você vive, você veio pra ajudar a criar um novo mundo."
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Femmenino, Giselle Luzon, Donatela Araújo e Lili-Th respectivamente. Convidadas por Pablo Vittar em seu show aqui em JF, na festa FUNHOUSE
A ATUAL GERAÇÃO DE DRAGS EM JUIZ DE FORA TEMER
O que a atual geração de drag queens apresenta de diferente da antecessora? E da que foi pioneira no que diz respeito à arte da montação? Como narrador, observador e personagem deste texto me insiro aqui novamente para questionar você que chegou até aqui. Seria o acesso livre à internet? Seria o livre acesso ao popular RuPaul's Drag Race? Será a abertura (mesmo que não total) que os movimentos sociais abriram? Caminhamos para um mundo pós-moderno desprendido de estigmas que são intrínsecos na sociedade atual? Temos mais visibilidade atualmente que as drag queens que se apresentavam na Stand Up?
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Segundo Amanda Fierce a resposta é a autoafirmação. Para ela, as drags atuais exploram muito mais o que pode ser aproveitado de suas personagens. “Não se prendem a um esteriótipo.. um dia de barba, outro de sereia, outro de alien, outro de humano e assim por diante. E a expressão cultural é mais forte, mais difundida. Minha drag nasceu na época que drag e mulher trans andavam ‘juntas’ na luta, então o quanto mais feminina fosse, melhor. Androginia era um tabu... Drag sem peito? De barba? Suvaco cabeludo? Era absurdo”, comenta Amanda.

Lili-Th (Foto: Waguito Emerich)
De fato, o cenário atual tem tudo isso! Drags barbadas como Donatela Araújo; com o estilo inspirado em club kids e tranimals como GárNea e Lili-Th; que não utiliza seios em montação como é o caso de Femmenino, eu que vos escrevo, e tantas outras queens locais.
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Lucas Zonta Rodrigues, ou melhor, Lily-Th, observa a figura drag não apenas como o feminino exagerado, mas também como algo não humano. “Acho que por isso busquei a ideia de ser um demônio. Tenho muitos referências diferentes”. Suas referências estão em drags como Alma Negrot, Azazel, Ivanonvic e Hellonix, além de referências em torno dos Club Kids antigos e atuais.
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GárNea, personagem de Daniel Schaefer, que também surgiu em 2016, bebe de referências bem similares as de Lili-Th. Para ela, sua personagem representa um ser que vem de uma dimensão paralela a que vivemos. “Costumo dizer que ela é uma elfa da floresta que tem tentado sobreviver no nosso mundo urbano. Minhas referências vêm de algumas drags como a Alma Negrot, Kinaidos Sammael, Wandera Jones, e é inevitável para um little monster que faz drag não pegar uma referências da Lady Gaga”, comenta.

GárNea (Foto: Waguito Emerich)
Mas seria mesmo a atual geração todo este desapego para com o padrão de feminilidade estabelecido no fazer drag desde seus primórdios? Não é bem isso. Juntamente das queens já mencionadas há tantas outras como Luna Dilaurentis, Giselle Luzon, Nina Spektor e Pabloka compondo o nosso cenário. Elas representam em suas personas toda a feminilidade que já fora discutida por aqui. A resposta está na popularização da arte drag devido ao reality show Rupaul’s Drag Race, apresentado por RuPaul Charles. O programa trouxe à tona uma nova geração de drags queens, com idade média entre 19 e 28 anos. Tais performers estão renovando a cultura drag a partir de novos códigos estéticos, mas ainda assim bebem do fazer drag inicial, da representação de feminilidade que SIM, é o mais aceito e popular no reality.
Luna DiLaurentis, que começou a se montar depois de assistir RuPaul’s descreveu um pouco sobre o início de sua trajetória e suas referências: “Comecei a fazer drag há 7 meses, primeiro por influência do reality mais queridinho entre as gays, vulgo, RuPaul, mas depois que eu comecei vi que existe um universo totalmente fora daquele meio e que também é incrível. Luna representa coragem, extroversão e empoderamento, porque ser drag é bem mais do que colocar um salto alto e uma peruca! Ser drag é ter a capacidade de colocar um salto e uma peruca e dizer: SIM, EU SOU DRAG E NÃO VOU DEIXAR QUE SEU PRECONCEITO ACABE COMIGO”. Segundo a drag queen, suas referências para a personagem são Naomi Smalls e Violet Chachki, ambas drag queens que participaram do programa. Ela conta também que agradece a suas amigas Giselle Luzon e Nina Spektor pelo acolhimento e dicas de maquiagem.
Giselle Luzon Fierce, filha de Amanda Fierce, é conhecida na cidade por suas montações também. A queen que já foi hostess em algumas casas noturnas, trabalha atualmente como cabeleireira e maquiadora. “Foi em um carnaval onde tudo começou,e dali pra frente o amor pela Giselle só foi aumentando. Giselle é um tudo pra mim, minha válvula de escape”. Suas refrências perpassam por nomes internacionais e nacionais como é o caso de Amy Winehouse, Maysa e Frida Kahlo.
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Outra que se destaca no cenário por apresentar uma personagem bem feminina é Ana Paula Werneck. A queen, começou a se montar quando ainda com 17 anos e já ganhou o concurso Miss Gay Três Rios, todavia ela não se restringe apenas ao padrão modelo. “Hoje vejo em Juiz de Fora muitas transformistas e poucas drags, a diferença do transformista é a feminilidade, é o homem que se transforma com o intuito de ficar uma mulher com os traços e formas perfeitas. Já a drag é o exagero e a androginia, cílios longos e coloridos, perucas e penteados extremamente exagerados”, ressaltou. Ana Paula também afirmou que o fazer drag representa a figura feminina exagerada não necessariamente representada por LGBTIs.
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De fato, a arte da montação foi por anos restrita apenas aos homens gays, como mencionei a priori no texto. Acontece que o machismo é estrutural e não está desvinculado de nossa comunidade, majoritariamente ocupada por homens cisgênero. Todavia há sim pessoas que fogem desta concepção de “homem gay que é drag” fazendo um trabalho maravilhoso, inclusive em nosso atual cenário de drags juiz-forano.



Luna DiLaurentis, Giselle Luzon e Ana Paula Werneck, respectivamente
Vlada Vitrova, personagem de Letícia Vitral, doutoranda em Literatura Comparada em Växjö na Suécia, comentou achar ser drag desde quando nasceu. Segundo ela, sempre gostou de se vestir de forma diferente e sempre foi contra a imposição de gênero que a permeava por ser mulher. “Use roupas discretas, batom vermelho é coisa de puta, fale baixo, senta direito, se preocupe 100% com que os outros pensam, seja respeitável, não beba em festa, entre outros. Isso sempre me incomodou e me casou muito sofrimento”. A personagem, definida por ela como uma espiã soviética, a serviço na Alemanha Oriental, com dupla identidade e licença para matar, comentou também sobre as dificuldades de sua inserção no mundo drag.
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“No começo foi bem difícil, porque eu acreditava que mulheres não podiam fazer drag. Então, só me montava dentro de casa e tentava não dar muitas asas ao que eu fazia, com medo de estar ocupando um espaço que não me pertence (mas que hoje eu tenho certeza que pertence sim, viu, mulheres? Conheci o coletivo RiotQueens (com mulheres drags do Brasil inteiro) pela internet e elas me acolheram e me deram todo o suporte que eu precisava para me assumir drag. Então a Vlada nasceu no fim de Setembro, depois de um looongo período de incubação!"
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Vlada Vitrova (Foto de própria autoria)
Você, leitora ou leitor, deve estar se indagando: o cenário drag em Juiz de Fora é muito rico, há várias possibilidades e experiências drags por ai... ENTÃO QUAL O POR QUÊ DESSAS GATAS NÃO TRABALHAREM RESTRITAMENTE COM ISSO, NÃO SEREM RECONHECIDAS? Além do fechamenTO da Stand Up, como já mencionado também, há um descaso para com queens locais.
Rodrigo Medsan, criador de Eva Medsan reforçou que atualmente estamos num país que encontra-se divido e um pouco resistente à grande disseminação dessa cultura e que Juiz de Fora, vivencia atualmente, um verdadeiro retrocesso no que se refere à vida noturna, tanto em diversidade quanto em qualidade. Além do fato de que quando os eventos são voltados para as drags, dificilmente eles representam e incluem todas.
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“Os temas, quando divulgados, me parecem mais um oportunismo sob o modismo do que um espaço que nos acolha, nos valorize e nos ofereça de fato essa temática, promovendo performances ou oferecendo essa atmosfera. À salvo algumas festas que acabam ganhando um destaque em nossas noites por desempenhar melhor esse papel do que as próprias casas noturnas. Devo citar a Funhouse, onde apresentei minha primeira performance drag profissional, idealizada por eles em uma das edições, sendo também a primeira apresentação drag nos palcos da festa. Foi uma estreia que deu sorte a mim e à festa, que desde então vem dando espaço e valorizando esses artistas, contribuindo para o nosso avanço”, reforça.
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Donatela Araújo, personagem do estudante de Administração César Dornelas, argumenta que o obstáculo principal para se fazer drag na cidade é quebrar a barreira da visibilidade. “A gente tá aí na rua fazendo o nosso trabalho, cada uma dentro da sua liberdade, da sua personalidade, mostrando sua arte, mas precisamos romper esses bloqueios de sermos invisíveis. Estamos aí e não nos veem. A gente só precisa é de oportunidade”.
Embora ainda exista esta barreira mencionada por Donatela, há queens locais, da geração atual, fazendo um trabalho que tem conquistado notoriedade em território nacional e, até mesmo, internacional. É o caso de Femmenino, personagem de Nino de Barros. Femmenino protagonizou o documentário de 26 minutos, “Feminino” que foi exibido no festival Fringe! Queer Film & Arts Festival, em Londres, Inglaterra. “Não imaginava todo este impacto. Fizemos o filme pensando em um contexto local e acabamos alcançando novos horizontes. Fico feliz em ser reconhecido fora do Brasil como um artista exuberante e desafiador”, afirmou Nino em entrevista para o jornal local Tribuna de Minas. Nino de Barros, ou melhor, Femmenino, é conhecida também por fazer parte do bloco carnavelesco e coletivo artístico Realce e por apresentar o Som Aberto (evento organizado pela UFJF aos finais dos meses). A persona do estudante de Artes é uma extensão de sua própria personalidade mesclada a um leque de possibilidade e referências eternas e estéticas.
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Eva Medsan no clipe "Eu quero ficar" da MC Xuxu

Donatela Araújo (Foto: Waguito Emerich)

Nino de Barros/Femmenino ou a mais bem paga da atual geração de drags, paz.
Embora tenhamos drag queens do cenário atual que já possuem certa notoriedade na cidade, país ou até mesmo fora dele (como é o caso de Femmenino e Vlada), o cenário drag em Juiz de Fora ainda tem muito que evoluir. FAZER DRAG AQUI É SIM UM OBSTÁCULO QUE PRECISAMOS URGENTEMENTE DERRUBAR. Temos drags de todos os estilos, de várias vertentes estéticas, todas com muito talento e autenticidade... Todavia, estão escondidas em grupos e/ou subgrupos específicos. Não temos casas noturnas que nos acolha, não temos festas mensais, tampouco remuneração para fazer o trabalho.
“O principal obstáculo hoje é espaço. Não há uma boate que abra de fato um espaço que abrace as drags como estrelas da noite", afima Leslye Housvel.
Luna Dilaurentis acrescentou que, além disso, também é complicado em relação a própria recepção do público. “Primeiro: Não valorizam nosso trabalho (não só aqui), arcar com despesas drag é super difícil aqui no Brasil, geralmente quando nos apresentamos é para o público LGBT, e o pior de tudo é que alguns são menos receptivos que o público hétero”, fomentou.
Eu, LU CY, ouso afirmar que em minha trajetória (me monto há mais de um ano), nunca recebi por nada que fiz in drag. Eu, assim como várias outras companheiras de montação, fazemos por amor à arte, à transformação, ao afrontamento, apenas.
Giselle Luzon conclui que “as manas estão tentando aparecer cada vez mais e serem valorizadas, mas ainda tá faltando a união das gays. O nosso cenário atual é meio pombo porque as boates não dão valor algum pra nossa classe. Produtores de festas, quando querem as coisas de graça, tratam a gente a pão-de-ló, mas quando a gente precisa deles, eles pouco se fodem”.
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Finalmente, finalizo o texto reforçando que a matéria é também, antes de tudo, um apelo pela união de nosso meio e crítica a situação que encontramos atualmente. Vamos ou não vamos começar a nos mexer?